Vattimo e a fé cristã

Por Pe. Ademir Guedes, cp

Ainda se repercute a notícia da morte do filósofo italiano Gianni Vattimo (1936-2023). Muito se comentou acerca da sua originalidade: a elaboração do chamado «pensamento fraco». Esta sua contribuição, situada em contexto de pós-modernidade, me serviu de inspiração para escrever a minha dissertação de mestrado em teologia fundamental, pois o pensiero debole (pensamento fraco), segundo Vattimo, é uma transcrição daquilo que a revelação cristã pretende proclamar (a kénosis), ou melhor, a novidade do cristianismo pode ser interpretada para nossa hodierna cultura a partir do movimento de enfraquecimento que o Ser da filosofia ocidental realizou até chegar ao atual momento histórico em que vivemos.

Mas Vattimo só faz a associação do enfraquecimento do Ser com aquilo que a revelação cristã traz de original, só depois de ter aprofundado as obras de Nietzsche e de Heidegger. Partindo deles, ele lê Paul Ricoeur e, enfim, como se fosse um tipo de insight, chega à conclusão que o leva a retornar a fé cristã em suas origens bíblicas: se o Ser sofre um gradativo desgaste (enfraquecimento), o qual se desvincula da visão metafísica (totalitária, homogênea, necessária, universal) que regeu toda a sociedade ocidental até a época moderna, então a única possibilidade de refletir a fé a partir desta nova concepção reside na Kénosis de Deus, realizada em Jesus de Nazaré que se rebaixou, renunciou a qualquer forma de poder e se encarnou para ser um homem. Não é isso, de fato, a originalidade da mensagem cristã? Mas o que ela implica?

As implicações são tantas. Se o Ser não pode mais assumir traços metafísicos (não há espaço aqui para demonstrar o processo filosófico desta conclusão), mas fraco então a visão da vida deve ser organizada a partir das realidades contingentes, ou seja, não é mais uma cultura (eurocêntrica) que governa a ética, a moral, a religião, a educação. Ao invés, são as culturas locais com os seus variados modos de interpretar e de enxergar a realidade que conta. A uniformidade cede lugar à pluralidade, ou melhor, todo ponto de vista é a vista de um ponto (L. Boff). Não há uma verdade única, mas apenas interpretações específicas (ad infinitum) sobre determinado ponto de vista. Isto é o que forma a atual sociedade pós-moderna em que vivemos.

A questão a ser ainda aprofundada é se o pensiero debole é um niilismo vazio de verdade. Não era esta a intenção de Vattimo. A sua aversão a tudo que é metafísico residia nas ações decorrentes de formas de pensar totalitárias e intransigentes. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu nas colonizações: houve muito derramamento de sangue de povos inocentes, pois eram tidos como inferiores, visto que não se enquadravam no protótipo ideal de homem civilizado. Será que estes povos não haviam algo a dizer e a ensinar? Um pensamento intransigente serve geralmente para afirmar a posição daqueles que dominam. Mas na pós-modernidade as massas excluídas, graças aos meios de comunicação, começam a tomar a palavra e a expressar a sua identidade de diferentes maneiras, a sociedade torna-se cada vez mais transparente. A propósito, este é um dos títulos de uma obra de Vattimo.

Por que Vattimo vê no pós-moderno uma oportunidade para viver a fé? Porque na época atual tudo parece se aproximar do estilo da kénosis de Jesus, pois o Ser que rege a atual cultura ocidental escolheu viver de modo frágil. Nós estamos no milênio da fraqueza. Mas isto ainda não é tão obvio. Todas as estruturas que organizam a existência deverão passar por uma reforma, caso contrário haverá sempre atrito e choque de realidades. Tudo se encaminha para as coisas mais breves, nada a longo prazo funciona como antes. Os casais entram na noite escura quando pensam que a relação deve ir até o fim da vida, os jovens que optam para a vida consagrada quando se deparam com a profissão perpétua dos votos e as suas implicações, preferem não imaginar o futuro. Decorre assim a crise, pois é mais plausível curtir só o presente até esgotar todo o prazer do momento. Vale recordar que o matrimônio e a vida consagrada são dois estilos de vida nascidos justamente em contesto de mundo pré-moderno e, portanto, regidos por uma forte metafísica.

A metafísica deu todo o suporte para elaborar os discursos de elevado nível de abstração: são as chamadas metanarrativas. Veja-se por exemplo, as obras de Platão e de Aristóteles. Nelas estão fincadas as raízes do pensamento ocidental em todos os seus níveis. Mas o pós-moderno fala da crise das metanarrativas. A mente do homem de hoje sente dificuldade em concentrar-se sobre a literatura clássica. É melhor ler as curtas mensagens de WhatsApp e buscar respostas mais rápidas na Inteligência Artificial (IA). Assim é a nossa atual forma de pensar: breve, direta, simples, precisa, sem divagações. Nos anos que se seguem ninguém poderá escapar a esta nova estrutura do Ser.

E a religião com suas estruturas clássicas de governo e com seu discurso metafísico? Ela só será credível se levar a sério a kénosis de Jesus. Para tanto, deverá se despedir dos seus velhos hábitos. Não funcionará mais a autoridade do padre como um homem que tem a última palavra sobre a vida dos outros, as homilias não podem ser mais sermões longos, mas deverão ser breves mensagens carregadas de imagens concretas que falem diretamente ao problema das pessoas (como fazia Jesus). Os conventos vivem uma constante situação de ambivalência: alguns de seus membros vivem em estado de confusão interior, mesmo que não queiram admitir. Dou um exemplo muito banal: alguns vestem o hábito só como uma atração estética, reduzida as celebrações litúrgicas, mas no dia a dia a clássica pobreza pregada pela metafísica (esta dizia que o hábito nunca deveria ser tirado) cede lugar as vestes da moda corrente. O pensiero debole, contudo, pede coerência. Por isso, Jesus tanto insistiu: ou sim ou não. Mas para não ser intransigente será cada comunidade religiosa a decidir juntos a melhor forma de vida que não gere conflito interior. A questão é esta: ora vivemos um estilo forte ora queremos um estilo frágil. Os sinais dos tempos, contudo, apontam para o estilo frágil.

A obra de Vattimo é provocante. Ele mesmo foi um personagem que levantou grandes provocações. Em minha opinião, aquela mais apaixonante reside em assumir o extremo da kénosis: a caridade. O cristianismo é um modo de habitar este mundo em fragilidade, sem poder, sem verdades violentas. Vattimo denunciou em sua filosofia o esquecimento do Deus bom. Propôs retornar a Jesus em sua forma de despojamento, tal como o vemos suspenso na Cruz como um Deus à mercê dos homens, mas pleno de caridade. Eis o desafio que nós crentes teremos que enfrentar neste milênio: habitar a história em estado de fragilidade, tendo apenas a caridade como única possibilidade de vivermos a fé. Será isso possível?