P. Ademir Guedes Azevedo, cp.
Esta semana estamos celebrando o sétimo dia da Páscoa de irmão Fernando, religioso passionista da província Getsêmani, falecido em 21 de setembro. Seria muito banal não fazer a estimulante memória do seu legado, até porque nós que o conhecemos sabemos bem da grandeza de seu testemunho de religioso. Uma vida como foi a dele, deve ser narrada para as futuras gerações pelo desconcertante fato dele ter feito a opção de servir e seguir a Jesus numa perspectiva bem diferente daquela que a maioria está acostumada: caminhar nas pegadas da cruz de Jesus como um irmão leigo consagrado. Na nossa província ele está na nona posição dos irmãos leigos que entraram e perseveraram até o fim sem desistir dos votos. Será ele o último desta espécie? Ou será que o testemunho dele não abre uma porta na província para repensarmos o quanto é necessário e urgente a presença de irmãos em nossas comunidades e na vida passionista? Mas quem de nós vai honrar o seu legado? E qual é este legado? É sobre isso que esta singela homenagem se ocupa.
Se partirmos do pressuposto de que a vida consagrada nasceu para ser na Igreja um choque e um impacto, então a vida de irmão Fernando foi demasiada evangélica e eu não consigo vê-lo de outra forma. O choque que a vida consagrada dava na igreja era sobretudo naqueles momentos difíceis, quando a comunidade cristã tomava um rumo errado e distante do evangelho, quando fazia pacto com o poder, o sexo, o dinheiro, quando se tornava mundana e pervertida como “a grande Babilônia, a mãe das prostitutas e de todas as abominações da terra” (cf. Ap 17,5), então Deus suscitava Antão, Bento, Francisco, Domingos, Paulo da Cruz para acordar a igreja de seu delírio e da sua falsa ideia de Jesus e de sua mensagem. Esse era o choque: abrir os olhos e retornar ao primeiro amor, ao caminho da cruz, da fidelidade, daquilo que é a igreja: serva e o sinal do Reino entre os povos. Nunca o sinal da Babilônia, mas da Jerusalém celeste. Da esposa fiel ao cordeiro.
A vida de irmão Fernando foi sempre esse choque, esse apelo, essa denúncia, essa profecia, esse sinal de viver a vocação cristã em nosso meio passionista. Em 2007 quando o conheci no Cabral e gozava de certa saúde, era incrível sua disponibilidade e atenção conosco. Seu olhar e sua ação silenciosos, sua simplicidade e seu caráter expressavam a sua fé na promessa de Deus. Quem persevera e atravessa as décadas sem olhar para trás, sem se lamentar e sem aquela pergunta se valeu ou não a pena, realmente vive no abandono diário e na felicidade espontânea que nasce de dentro da alma. Este era irmão Fernando e o seu modo singular de descarregar o choque que, na minha opinião, ele nos dava como passionista.
Mas seu legado não é só pessoal, tem um efeito comunitário, pois alcançava a vida do próximo. Irmão Fernando era amigo dos pobres. Ele desenvolveu uma mística de olhos abertos, na qual se verificava uma pericorese de caridade: ele inserido no sofrimento dos pobres e este sofrimento inserido no coração dele, como sinal de ternura e afeto cristão: foi assim que ele se tornou um bom samaritano que acudia as necessidades dos mais frágeis com o famoso pão dos pobres.
Eis um legado evangélico e comprometedor para nós. Mas ainda há algo que corrobora seu testemunho: se trata da cruz que ele abraçou nos anos de sua doença. Nos anos que gozava de saúde era ele quem tocava na cruz de Jesus através de sua amizade com os pobres, mas nos anos de seu calvário era o próprio Jesus que o tocava com a sua cruz. Um toque de compaixão, de gratidão, de predileção. O crucificado, diariamente, tornou-se seu companheiro de calvário. Foi ali que ele descobriu vários cireneus representados nos outros passionistas que cuidavam dele como um irmão mais velho.
Nesta hora de gratidão e de reconhecimento do legado da figura ilustre deste nosso irmão, forjado no carisma passionista, não resisto à vontade de mencionar uma daquelas histórias exemplares narradas por Heródoto. Ele conta a história de Psaménite. Quando o rei dos egípcios, Psaménite, foi vencido e mais tarde feito prisioneiro por Cambises, rei dos persas, este tratou de humilhar o rei egípcio, obrigando‑o a assistir à marcha triunfal dos persas. Organizou tudo de maneira a que Psaménite visse desfilar, na condição de escrava, a sua filha capturada. Enquanto os egípcios, de pé à beira da estrada, se lamentavam perante o que viam, Psaménite permanecia em silêncio, sem se mover, de olhos cravados no chão. Pouco depois, ao ver passar o filho a caminho da execução, manteve‑se ainda impassível. Contudo, ao reconhecer, no meio dos prisioneiros, um dos seus criados, um homem velho e decrépito, começou a bater com os punhos na cabeça, em sinal da mais profunda tristeza. Muitos intérpretes dessa história se questionam por que razão o rei egípcio apenas se lamenta ao ver o velho criado desfilar. O velho decrépito é a síntese da vida bem vivida que está prestes a nos deixar. Eis a causa do desespero de Psamênite!
Pois bem, esta história me faz recordar de irmão Fernando e da responsabilidade que o seu legado nos pede. Por um momento, creio que cada um deveria repetir este gesto de lamentação de bater com os punhos na cabeça, como sinal de lamentação pela partida deste velho de 90 anos que nos deixou, deste ícone de consagração passionista!
E agora, quem vai empunhar o chicote do legado do irmão? Quem vai ousar entregar a vida como leigo passionista consagrado? Quem de nós vai desafiar os estudantes e os futuros candidatos passionistas a serem ousados a tal ponto de assumir esta vocação? A história vai nos dizer…