P. Ademir Guedes Azevedo, cp.
Fez a sua Páscoa o patriarca da chamada teologia da libertação: refiro-me ao ilustre discípulo de Jesus, Gustavo Gutiérrez Merino (1928-2024). Peruano, de traços indígenas, dotado de cultura refinada e marcado pelo bom-humor cultivado na sabedoria de quem aprendeu a viver enraizado no contexto e sem as fantasias que tendem a negar aquele real e dramático aspecto, inerente a condição da vida humana: o sofrimento. Neste sentido, gostaria de ler a sua vida a partir do calvário. Que lugar é este? Consiste naquilo que Gutiérrez chama de a descoberta do «mundo do outro». Neste mundo se encontram os pobres, aqueles que não podem viver. Nascem e morrem, mas não vivem realmente, porque alguns mais fortes não deixam. Morrem antes da hora, pois são prematuramente abandonados, tornados invisíveis, nem sequer podem dormir serenos, uma vez que são atormentados pelo eterno pesadelo da desigualdade. É este pobre, portanto, que representa esta categoria de alteridade: o outro sofrido. Em outras palavras: se trata do homem crucificado de hoje. Ele vive eternamente num calvário. Pois bem, para descobrir este «mundo do outro», Gutiérrez se fez também um pobre, falou a partir deste outro crucificado, rezou, lamentou, profetizou…enfim escreveu a sua teologia só depois de ter frequentado esta escola do calvário.
Talvez um dado da sua biografia possa iluminar esta espontaneidade evangélica de viver de olhos abertos para o sofrimento alheio: na sua infância e adolescência ele experimentou na carne a doença da osteomielite, a qual lhe fez permanecer numa cadeira de rodas dos 12 aos 18 anos. Gutiérrez tornou-se cidadão do calvário desde os primórdios de sua existência.
Ele foi um teólogo provocador. Desde este calvário do pobre crucificado, ele inverteu o modo de escrever a teologia. Para entender a sua originalidade, deve-se partir daquilo que ele chamava de «ato primeiro», o qual consiste numa experiência mística vivendo inserido neste «mundo do outro». Aqui se adora e contempla a Deus na sua carne sofredora. Antes de escrever a teologia, é necessário primeiro experimentar o primado divino (a espiritualidade). Gutiérrez foi um daqueles bons samaritanos: ele via e se inclinava para sentir o clamor de Jesus Crucificado nos corpos crucificados suspensos nos calvários das favelas, no desemprego, na fome, na falta de terra. Então só depois, num segundo momento, ele elaborava o discurso teológico. A teologia passa a ser «ato segundo», pois nasce da chamada práxis contemplativa e da mística do sofrimento humano. É uma teologia da kénosis: precisa descer, inclinar-se, tocar as feridas, chorar primeiro com os que choram e isso faz toda a diferença. A teologia deixa de ser um discurso dedutivo, perde a sua arrogância de querer sempre corrigir a realidade e adota a indução: sente, observa, escuta, questiona sobre as causas do sofrimento e busca as respostas a partir da própria experiência de vida do mundo do pobre.
A pergunta base que sempre moveu este teólogo do calvário foi: como dizer aos pobres que Deus os ama? Sim, como falar de amor em contextos de dor e desespero humano? Como falar do Deus da vida onde tudo parece ser habitado por ossos secos? Vida, dignidade, fraternidade só podem ser possíveis se primeiro se sente a dor do outro e se aprende a falar de Deus a partir dela. Esse foi o grande contributo da teologia deste discípulo fiel de Jesus Crucificado.
Recordo-me de alguns títulos de sua vasta obra teológica, títulos estes exageradamente evangélicos: «Falar de Deus a partir do sofrimento humano»; «O Deus da vida»; «Em busca dos pobres de Jesus Cristo»; «Beber no próprio poço»; «A força histórica dos pobres» e, sobretudo o seu famoso «Teologia da libertação». Todos estes títulos não formam uma teologia de silogismos, mas propõem um programa de vida cristã com uma mística contemplativa, mas de olhos abertos ao contexto em que se vive. Mística de olhos abertos e direcionados ao mistério do sofrimento que clama pela nossa compaixão.
Há outra questão fundamental: quando Gutiérrez situa a reflexão teológica no nível de um «ato segundo» ele está tentando dizer que não existe uma teologia que sirva de explicação para todos os contextos, pois toda teologia só vale se for contextual. Qualquer pretensão de universalismo e homogeneidade termina sendo uma violência e imposição racional que atropela a riqueza das experiências locais.
Por isso, a teologia nasce onde pisam os pés. E os pés de Gutiérrez pisavam no chão do calvário das inúmeras vítimas que viviam sempre às margens. Elas, contudo, tiveram um irmão mais velho que as defendia e as pôs no centro do discurso sobre Deus; estas vítimas, de certa forma, acompanharam a caminhada deste servo de Jesus que hoje fez a sua Páscoa, pois o calvário que Gutiérrez optou não tinha a última palavra, foi apenas a ponte para a sua Páscoa.