Meditações para o retiro de abertura do 48º Capítulo Geral (07.10.2024) – Dom Luiz Fernando Lisboa, cp
Pedimos-vos, ó Pai, pela morte do vosso Filho sobre a cruz, de abrir nosso coração ao conhecimento de vossa Palavra. Dai-nos não nos espantar por esta experiência, mas vivê-la com paciência, minuto a minuto, com a certeza de que nos conduzis também através dos momentos de silêncio, de aridez, de cansaço, de deserto, porque vós sois maior que nós e o nosso coração encontra descanso só em vós. (Cardeal Martini).
Nossa Senhora da palavra e do silêncio, rogai por nós.
Primeira parte
Eu quero iniciar este Retiro lembrando as palavras do Santo Padre na audiência concedida a nós por ocasião do último Capítulo Geral:
“No centro da vossa vida e da vossa missão está a Paixão de Jesus, que o Fundador descrevia como ‘a maior e mais maravilhosa obra do amor de Deus’ (Cartas II, 499). O voto que vos distingue, com o qual vos comprometeis a manter viva a memória da paixão, coloca-vos aos pés da Cruz, da qual brota o amor sanador e reconciliador de Deus. Encorajo- vos a ser ministros de cura espiritual e de reconciliação, tão necessárias no mundo de hoje, marcado por chagas antigas e novas. As vossas constituições exortam-vos a dedicar-vos totalmente à ‘evangelização e reevangelização dos povos, com preferência pelos mais pobres nos lugares mais abandonados’ (Const. 70). A vossa proximidade ao povo, manifestada tradicionalmente através das missões populares, da direção espiritual e do sacramento da Penitência, é um testemunho precioso. A Igreja precisa de ministros que falem com ternura, que ouçam sem condenar e acolham com misericórdia. (…) Hoje a Igreja sente o forte apelo a sair de si mesma e a ir às periferias, quer geográficas quer existenciais. O vosso compromisso a abraçar as novas fronteiras da missão requer não só que vades em novos territórios para aí levardes o Evangelho, mas também que enfrenteis os novos desafios do nosso tempo, como as migrações, o secularismo e o mundo digital. Isto significa estar presentes naquelas situações nas quais as pessoas sentem a ausência de Deus, e procurar estar próximos de quantos, de qualquer maneira ou forma, estão a sofrer”. (Papa Francisco, Sala do Consistório, 22/10/2018).
Este é um verdadeiro projeto de vida!
É próprio da nossa Congregação fazer constantemente “memoria passionis”. Fazer memória, o zikkaron, não é simplesmente lembrar algo no passado, muito menos, fixar-nos nele, mas trazer para o presente, é ter a presença da mesma realidade, embora de forma diferente e sempre nova. É fazer-nos presentes ao passado, é tornar o passado um hoje, dispondo-nos para a vivencia futura, na força presenciada do que, no tempo, ficou para trás. Assim, para nós a paixão é um fato sempre atual e atuante em nossa vida. É dessa forma que encontramos vida na morte, força na fragilidade e esperança no sofrimento.
Outra forma de dizer “memória” é ter diante dos olhos. Temos, então, constantemente a Paixão do Senhor diante dos olhos. Vemos Jesus sofredor, como o Servo de Is 53 e tantos outros sofredores do antigo testamento, como Jeremias e Jó, como tantos suplicantes nos salmos de súplica coletiva ou individual (Cf. Os Salmos 22, 31, 69). Olhamos e vemos em Jesus as dores do mundo, da natureza ferida e das humanidades destruídas. Podemos ver confrades sofridos e tudo o que teve de sofrer São Paulo da Cruz. No seu seguimento, São Gabriel de Nossa Senhora das Dores e Santa Gema Galgani. Percebemos também o olhar do Pai para Seu Filho, dizendo ao vê-lo esmagado pela maldade humana: “Esse é o meu filho amado”. Aquele que o Pai apresenta como Seu Filho bem-amado e que no seu amor paterno destina ao sacrifício. A voz celeste toma a forma de um amor de pai que se sacrifica enviando seu filho a morte (Cf. J. Galot). Vemos Jesus refletido em nós e vemo-nos refletidos em Jesus. Grande dom de amor: Poder-nos ser refletidos em Jesus.
O momento maior de memória é a celebração da Eucaristia. Presença e atuação da grande eucaristia que começou na Última Ceia, continuou na Cruz e hoje se prolonga na paixão de tantas pessoas próximas ou distantes, nas guerras, nas injustiças, na fome, nos preconceitos, nos descartes, nas muitas solidões, na natureza destruída (queimadas, inundações, eventos climáticos de todo tipo). “Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução, mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas. Precisamos de nova solidariedade universal” (Cf. Laudato Si 14).
Cada um de nós traz em si os sinais da morte de Jesus (Cf. 2 Cor 4,10a). Como vivemos a nossa paixão?
Seu fruto é identificarmos com Jesus, principalmente com o sentido da paixão do Senhor. Aceitar a cruz não pode ser autopunição, ou uma espécie de masoquismo. Quando sofremos estamos nos unindo e fazendo-nos solidários com tantos sofredores. O Messias sofredor assumiu as enfermidades do povo e carregou seus pecados. Nosso sofrimento é lutar contra o comodismo e a indiferença. É renunciar ao nosso para libertar o povo. É vencer as estruturas da dor para dar vida. Assim, paixão se torna missão. Missão de dar vida nas mortes, dar força na fragilidade, dar esperança no sofrimento.
Rezando o rosário temos os mistérios da dor. Também eles nos ajudam a conservar a “memoria passionis” e são destaques feitos pela devoção do grande mistério da paixão, o momento máximo de nossa redenção, junto com a ressurreição pascal de Jesus.
A primeira cena proposta a consideração de todos é a agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras. É o mistério de ser humano. Jesus assumiu a nossa humanidade e aqui nós vemos manifestar-se como nunca a sua humanidade: o mistério do seu ser humano. Na prova e na luta se expressa a angústia humana, na tristeza profunda, no pavor diante da fraqueza humana. A solidão dói e a procura de companhia é frustrada. Seu corpo sua sangue e se torna tão sensível como expiação por tanta insensibilidade. A humanidade de Jesus pode ser vista na sua relação com o Pai, e naquilo que Ele viveu a maior parte da sua existência humana, a relação com Maria e José: “era-lhes submisso”. Resta a Jesus a plena confiança e a entrega a vontade do Pai. Ele mesmo ensinou a dizer ao Pai: “Seja feita a vossa vontade”. É Deus, mas quis ser humano e experimentar todas as formas de sofrimento humano.
Eis um Deus humano e a humanidade de Deus. Na sua agonia talvez Jesus tenha diante dos olhos o absurdo sofrimento e se abaterá sobre ele. Mas não volta atrás. O cálice está cheio até a borda. Ele aceita bebê-lo até o fim. Sua ciência divina atingiria todo o futuro e perceberia que a indiferença sonolenta e o abandono dos discípulos anunciava a irracionalidade e a falta de lógica da humanidade apegada ao pecado? Tudo ele fez, mas os homens preferem-se a si mesmos, o fracasso oprime o seu coração. Somos, cada um, um vaso de cerâmica que contém um inestimável tesouro e percebemos com clareza a nossa fragilidade humana. É ilógico saber-se tão grande e, ao mesmo tempo, tão ínfimo. Contemplando nossa realidade humana descobrimo-nos tão sublimes e capazes de coisas até execráveis. O próprio mistério tão excelsos contido em nossas mãos, tantas vezes é fonte de angústias e tristezas inexplicáveis. A tantos a solidão atormenta. Até o carinho de Deus parece inatingível. Podemos sentir também a sensação de inutilidade, de fracasso, de esforços feitos em vão. Somos humanos. Como poder dizer: “Faça-se a vossa vontade e não a minha?”.
Jesus com coragem absoluta assumiu a dor e a morte, mesmo com o silêncio do Pai.
Como São Paulo da cruz viveu o seu ser humano? Como viver a missão de estar junto da humanidade sofredora?
A segunda cena proposta à consideração dos cristãos no rosário é da flagelação de Jesus. É o mistério da aceitação. Os evangelhos são de uma estranha concisão ao falar da flagelação imposta a Jesus. Dizem simplesmente que Pilatos mandou flagelá-lo. A flagelação era uma tortura que precedia a crucificação dos condenados. Muito cruel esvaía as forças, numa tentativa de apressar a morte. Pelo que já se descobriu nos estudos feitos, sabe-se o que ocorria. A carne do condenado era dilacerada e a humilhação doía mais. Jesus se submete ao procedimento doloroso, como que a denunciar a busca de comodidades e satisfações próprias da humanidade, culturalmente entronizada no nosso tempo. Jesus aceita o que se lhe faz. Grande mistério de aceitação. Aceita por nossa causa. Em torno a nós há tantos corpos torturados, corações destroçados, vidas destruídas. A humanidade ferida por suas próprias mãos. Feridas provocadas, auto infligidas. Guerras, terrorismos, violência, migrações forçadas, multidões de refugiados.
“É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil” (LS 25).
Os flagelos se renovam, adquirem novas fórmulas, mas ferem sempre. Também nós somos constantemente flagelados, também a nós pode se aplicar o que diz 2Cor 4, 8-11. Chamados a reviver o mistério da aceitação. Unidos a Jesus, os nossos sofrimentos se tornam Dele também. Ele sofre conosco e em nós. Assim se tornam salvíficas as nossas dores. Como viver nosso envio a estar com os sofredores e curar suas feridas? Como São Paulo da Cruz viveu o mistério da aceitação?
Continuando a fazer a “memoria passionis” consideramos agora Jesus sendo coroado de espinhos e o mistério do ser nada. A brevidade da descrição da cena da coroação com espinhos é como um golpe violento na consciência do leitor do texto evangélico (Jo 19, 2; Mt 27, 29; Mc 15, 17). O tamanho da crueldade é comparável com o tamanho da injustiça. Pilatos, indiferente a qualquer sofrimento, só pensa na manutenção de sua posição, no seu poder.
“Exige-se da política uma maior atenção para prevenir e resolver as causas que podem dar origem a novos conflitos. Entretanto o poder, ligado com a finança, é o que maior resistência põe a tal esforço, e os projetos políticos carecem muitas vezes de amplitude de horizonte. Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?” (LS 57).
O papa Francisco disse que o “mundo exige dos líderes governantes vontade política para a adoção de medidas imediatas para a preservação ambiental e para acabar com a exclusão econômica e social e suas tristes consequências” (Discurso na ONU, 25/09/2015).
A coroa, símbolo de superioridade, de posição, de poder, aqui é o sinal de maior zombaria e humilhação. No entanto, a verdadeira grandeza está naquele que quiseram humilhar. A ironia da cena, a imitação grotesca de uma entronização, na verdade, revela o nível mais baixo de quem humilha, de quem usa o outro como degrau. Ao mesmo tempo, nos diz que Jesus por sua humilhação recebeu o nome que está acima de todo nome. O ser reduzido a nada é a concretização da kenosis, do rebaixamento que é a máxima elevação. Jesus aceita ser nada para que todos pudessem receber a plenitude de sua vida.
Na vida da Igreja e do mundo quantos quiseram ocupar postos de glória e o efeito sempre foi desastroso. Quantos procuraram se alçar as alturas pisando sobre a vida, a honra das pessoas, negando oportunidades, explorando, mentindo. O orgulho, a arrogância, o autoritarismo, o carreirismo, o estrelismo, quanto provocaram de opressão. Jesus escolheu ser nada. Em vez de louro, foi coroado de espinhos. Ele que aconselha ir para o último lugar, ocupou-o de tal modo que ninguém pode ocupá-lo. Nosso lugar, pois, é sempre o penúltimo.
Como viver a missão de estar ao lado dos últimos, daqueles que o mundo reduz a nada? Como São Paulo da Cruz soube viver assim?
Segunda parte
São Lucas 9,51 nos leva a ver Jesus tomando a firme resolução de se dirigir a Jerusalém. O texto grego nos diz que ele virou o rosto naquela direção, mesmo sabendo o que lhe esperava. Em cada momento manifesta a força vitoriosa no sofrimento, na sua paixão, como um chamamento especial à coragem e à fortaleza. Seu caminho atinge seu auge quando toma a sua cruz e se dirige ao calvário. Seu mistério salvífico aqui é o carregar. O bom pastor nos toma sobre seus ombros. Sua cruz somos nós, sua cruz mais pesada, o peso de toda a humanidade. De repente uma ajuda inesperada. Surge, como que de surpresa, alguém que vai carregar a cruz atrás de Jesus. Obrigado ou livremente, não importa. Aceita levar a cruz.
Temos, plasticamente, concretamente, o símbolo do discípulo, o que toma a sua cruz e segue após. Para o discípulo o chamado inclui, como consequência, carregar a cruz. Isto é, deixar-se assemelhar e se assimilar ao Senhor. Carregar a cruz é assumir os sentimentos e as atitudes de Jesus. Lendo Isaías 53 os cristãos souberam reconhecer aí Jesus como o que tomou sobre si a maldade humana e que foi esmagado pelos crimes da humanidade. Com Jesus assumimos as dores e as esperanças humanas. Ao dar atenção e consolo as mulheres de Jerusalém, Jesus nos leva a olhar as dores de tantas mulheres que com ele, carregam a cruz da violência, da fome, da discriminação, do tráfico humano, da violência doméstica, do feminicídio, da migração forçada, da mutilação, da perda dos filhos. Não fomos chamados para olhar para nós mesmos. Nem para lamentar nossos fracassos e tristezas.
“Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência. Em contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes econômicos transnacionais que aplicam o lema ‘divide e reinarás’” (Fratelli Tutti 12).
Como Jesus somos chamados a coragem e a fortaleza. Nossa missão é carregar as cruzes das dores alheias. Mesmo que a nossa própria cruz nos pese. A cruz da vida, das limitações, dos defeitos, até dos pecados que reconhecemos em nós. Isto sem nos voltar para dentro de nós mesmos. Na medida que assumimos as dores dos outros, vai-se manifestando o sentido salvífico do sofrimento. Estar atento aos outros liberta-nos de nós mesmos. Nossos olhos devem perscrutar a multidão que nos rodeia e individuar as dores daqueles onde pousam nossos olhos. Carregar a humanidade sobre os ombros é estar junto aos que sofrem qualquer dor para lutar por vida para todos. Compreender os que erram, fazer-lhes descobrir a vida e depositar em Jesus a esperança. A união com Jesus é a força para se chegar a isso. Só a graça divina o realiza. Como viver concretamente essa missão? Como São Paulo da Cruz carregou a sua cruz e a dos outros?
O Mistério da morte
Consuma-se o batismo de Jesus. Jesus é submerso no mistério da morte. A celebração pascal, iniciada na última ceia, prolonga-se e se concretiza na cruz, é tornada presente em cada Eucaristia e continuada nas dores das vidas sofridas de todos os tempos. O mesmo ato de amor absoluto, de doação total perpetua-se diante de nós e nos arrasta como onda avassaladora para vivermos integralmente o amor. A Páscoa do Senhor nos envolve, nos ressuscita, dá-nos o dom do Espírito e nos impulsiona para o dia definitivo da vinda gloriosa do Senhor. Diante de nós o preço de nossa salvação, o cordeiro imolado, o vivente. Sua cruz é a cátedra mais eloquente. Nela aprendemos o verdadeiro amor. Não conhecemos para progredir no amor a Deus, livro mais sublime do que Jesus Cristo Crucificado (S. Maximiliano Kolbe). Deste seu trono, sua cruz gloriosa, fluem os quatro rios que purificam e irrigam todo o universo. Lavados e purificados no sangue redentor, somos revestidos da nova veste, recebida no batismo. Veste alvejada no sangue do Cordeiro: cor rubra de sangue e cor branca, morte e ressurreição. Como no Gênesis, Deus reveste nossa nudez, nosso nada, agora com a veste incorruptível da graça. Diante de nós a terrível morte por crucifixão. A surpreendente simplicidade dos relatos evangélicos, faz refletir a grandeza, a importância e a majestade do fato.
Em Fil 2, 5 São Paulo nos convida a ter os mesmos sentimentos de Cristo. Vendo-o na cruz, nos perguntamos: quais os sentimentos de Jesus naquele momento? Em primeiro lugar, a terrível dor física por todo o corpo. Mas seu coração sente a compaixão que o levou ao extremo do amor. Abandona-se aos torturadores e às mãos do Pai. Manifesta extraordinariamente seu perdão, tanto anunciado e ensinado. Acolhe a confissão do bandido crucificado com ele. E, talvez o maior sofrimento, o abandono do Pai. Estar na cruz, no lugar de todos os que recusam a presença amorosa de Deus. Reza o salmo 22: “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonastes?” Não recebe resposta. Como se o Pai lhe dissesse: não foi para isso que você se tornou humano? Você não sabe que eu não estou do seu lado, mas do lado desta humanidade que me rejeita? Por isso fiz de você o sinal da mais terrível separação, o se separar e ser separado de mim. É através da sua entrega amorosa que se cobre toda a falta de amor de toda a humanidade. A aceitação de Jesus é plena. Nosso olhar é atraído para a cruz. No deserto, os que olhavam para a serpente na haste ficavam curados (Num 21,7-9). O profeta (Zc 12,10) anuncia o dom de súplica e compaixão quando se olhar e chorar como se chora um filho único. João retoma a ideia em 8,28 e 3,14.
Agora só lhe restava a Mãe e a vida. Nesta hora, a mais solene, a mãe nos é entregue. A Mãe das dores, a Mãe da Páscoa. Mãe da Esperança, Mãe da Vida. Mãe das Sepulturas vazias, Mãe das Pedras Roladas, das Mortes vencidas. Maria das madrugadas para acordar a vida. Maria da pressa, da urgência, da vitória sobre o imobilismo. Maria da procura e do encontro, não dá tranquilidade acomodada. Maria, não do deserto estéril, mas das fontes inesgotáveis. Maria da beleza, da harmonia, das flores, da ternura e do carinho. Maria de Deus. Maria, MÃE.
Resta-lhe a vida. Também a entrega. João é o único que diz que, ao morrer, Jesus baixou a cabeça e entregou o espírito. Ou o Espírito. Voltado para a terra, voltado para a Igreja reunida aos pés da cruz, voltado para nós. O Espírito Santo derramado na paixão realiza a transformação do universo, acolhido num abraço pelos braços estendidos na cruz.
Assim faz com que o cosmos se torne a matéria da eucaristia escatológica, quando pela sua cristificação, Deus será tudo em todas as coisas. Magnífica e misteriosa manifestação da Trindade, o Pai que acolhe o sacrifício do Filho que entrega o Espírito. Mística escatologia já realizada e ainda não manifestada. Já morto, restava algo em Jesus? “… um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente saiu sangue e água. Sangue e água brotam do coração aberto, os sacramentos do batismo e da eucaristia. Ao rasgar-se o coração, compreendemos que a paixão é doar-se no amor. A ferida nos deixa ver o interior do coração, perscrutamos as entranhas da misericórdia “através das feridas do corpo manifestam-se os segredos do seu coração, revela-se o grande mistério de piedade, as entranhas de misericórdia do nosso Deus que das alturas nos visitou como sol nascente.” (S. Bernardo).
Entrando pela ferida do lado de Jesus, encontramos vida na morte, força na fragilidade, esperança no sofrimento. O Ano Santo de 2025 nos convida a peregrinar na esperança. Na Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, Francisco nos exorta: Não deixemos que nos roubem a esperança, o Evangelho, a comunidade, a alegria, o ardor missionário, o rosto jovem da Igreja… Fazendo memória da paixão, abre-se diante de nós a dimensão escatológica do que meditamos. Pela paixão e cruz com o momento culminante da ressurreição, está aberto para todos o Reino de Deus. Plenamente realizado em Jesus e ainda em construção no mundo. Por isso, peregrinamos com a Igreja e ela, nunca instalada na história, apela-nos a esperança. A Esperança está em nosso presente, mas no futuro de Deus. O que Jesus realizou na cruz sustenta a nossa esperança e assegura-nos o que nós ainda esperamos. Jesus identificou-se com todos os crucificados de todos os tempos. Viver a esperança é lutar para que haja vida, vida plena em todos os que sofrem.
A paixão se torna missão. A ela somos enviados. São Paulo da Cruz nos acompanhe e interceda por nós.