Por: Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp
A ambivalência é um dos maiores desafios enfrentado pela sociedade ocidental. O clero não escapa, sofre todo o seu drama, ao ponto de conduzi-lo a um estado de agonia.
Uma importante análise do tema da ambivalência se encontra no livro de Z. Bauman, Modernidade e ambivalência. O sociólogo polonês faz uma introdução sublinhando a obsessão pela ordem que está na base da chamada época moderna. Mas contra a ordem está o caos. Ordem e caos, à medida que se alternam, criam situações ambivalentes. A ambivalência é o limite da linguagem em encontrar os termos adequados para descrever de modo preciso determinada realidade. O próprio Bauman a define assim: «A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar» (BAUMAN, Modernidade e ambivalência, p. 9).
No mundo antigo e medieval esta «função nomeadora» que leva a um estado de ordem era concebida do ponto de vista natural. Tratava-se de um princípio exterior e superior a existência do indivíduo e transmitia segurança interior, bem como uma razoável explicação para entender a harmonia do universo que governava a vida do sujeito. O indivíduo teria apenas que conformar-se a este princípio. Por séculos a mente humana se adequou a esta autoridade exterior, rendendo-lhe obediência e depositando toda a sua confiança. A ordem, ou princípio ordenador, era concebido como o cosmos (mundo grego) ou Deus (mundo medieval).
Mas esta forma de vida foi duramente atacada com o alvorecer da chamada era moderna. Se no mundo precedente a ordem é natural, na modernidade ela se trata de um princípio artificial, ou seja, é uma criação do homem. Quem garante a ordem é a capacidade da ciência de mensurar os fenômenos da natureza. Esta perde toda a sua autonomia, pois o homem a explora e a codifica em cálculos e teorias precisas. Cria-se uma linguagem para explicar tudo, pondo em crise o princípio heterônomo, a existência de um mundo superior que controlava tudo era apenas a ausência da capacidade humana de gerir a si mesma. O homem torna-se o centro e cria as técnicas para a era das revoluções. Ele é um deus, pois as doenças são curadas pelas suas descobertas e não mais pela prece do crente que invoca o auxílio poderoso de seu Deus. A modernidade cria uma outra ordem em direção a um progresso linear de bem-estar: um futuro garantido pelo progresso que se testemunha já no presente.
Mas será mesmo que este projeto se manteve tão perfeito? O desenrolar da história demonstrou eventos catastróficos que puseram em dúvida o inebriamento moderno em impor ordem em tudo: trata-se das guerras mundiais e hoje, sobretudo, dos danos causados a natureza. A ambivalência surge exatamente diante desta sensação de fracasso, pois a ordem não é tão perfeita como se pensava e, por mais que se busque alternativas de resiliência, o projeto moderno sempre se depara com o seu limite de impotência e de desordem. A realidade, não sendo tão perfeita e regular como se pensava, escapa ao controle da razão, traz novos desafios que surpreendem e põem em crise a vontade de poder, o ideal de verdades homogêneas. A ambivalência é o elemento crítico que desafia a vida moderna.
Em que sentido, este cenário atinge o clero? Vivemos neste mundo, onde a ideia do progresso e do bem-estar nunca desaparecem. Desfrutamos de todas as invenções modernas que almejam ordem e segurança, as garantias de uma vida perfeita e todo o aparato tecnológico que trabalha a favor do alcance dos nossos objetivos. Mas são as sensações geradas em nós, decorrentes deste projeto, que causam a ambivalência de nossa existência, conduzindo-nos a um estado de agonia.
No clero, a ambivalência se manifesta de modo sutil. Somos guardiões de um patrimônio de verdade que também almeja a ordem, pois cremos que o pecado é desordem e ameaça a harmonia da criação. Nós continuamos a transmitir este depósito. Ele é esteticamente atraente e regido por uma lógica discursiva impecável. Do púlpito, e em tudo o que fazemos, tentamos transmitir esta verdade. Mas ela esbarra num ouvinte frágil e educado em outra época, na qual esta lógica milenar torna-se um pouco que estranha, pois as formas de vida de hoje são acostumadas com conversas e mensagens rápidas. Todo o discurso elaborado pelo clero rapidamente se dissolve com a distração de seu ouvinte: «foi bonito o que você disse, mas não entendi nada». Mas não é só o fiel a experimentar este drama, pois a fé do pregador é tão frágil quanto a dos seus ouvintes: eis que ele também, em sua forma de vida, parece não estar tão atento as palavras que saem de suas pregações, visto que se sente angustiado depois de tanto rezar e pregar. Sua vida parece perder o sentido (a onda de suicídios no clero é um escândalo para a consciência do santo povo de Deus), mesmo que ele ensine que em Deus está todo o sentido; ele está mal-humorado, mesmo que diga que Deus é a fonte suprema da alegria; ele vive dias de ansiedade em busca do psicólogo e do psiquiatra, mesmo que leia na Escritura que a nossa vida está nas mãos do Altíssimo; assim começa a agonia do clero, graças a ambivalência que põe em crise as certezas costumeiras que regem a vida do padre.
A ambivalência, elemento presente em qualquer que seja a forma de vida atual, é o agente causador da agonia do clero. Antigamente, quando tudo era interpretado a partir da radicalidade da época da cristandade, o clero de modo geral se conformava com a exigência de uma vida ordenada. Não havia margens para ambivalências, pois tudo girava em torno de um sistema claro e preciso. A forma de vestir-se do clero era única para todos, batinas e hábitos religiosos sempre e em qualquer que fosse a situação do cotidiano, orações e leituras regulares, a vida sacramental dava o ritmo da vida: o padre estava na Igreja e, na sacristia, o fiel com o terço na mão, era assíduo frequentador da vida paroquial. A festa e o lazer eram promovidos pela Igreja. Tudo era bem ordenado e claro, pois cada um sabia de fato assumir o seu papel, cada um tinha o seu lugar bem delimitado.
Mas eis que a ambivalência se infiltrou na história e tornou-se a hóspede do cotidiano dos padres. Batina e hábito só na Igreja, depois se assume outro estilo, pois no shopping e nos lugares públicos o padre se sentiria um extraterrestre, então é melhor vestir-se como um civil: eis a ambivalência! Parece que há um jeito de viver o profano e outro de viver o sagrado. A dualidade é terrível! Graças aos efeitos da ambivalência, o clero divide o coração e compromete a vocação, pois o padre é padre sempre, não em determinadas ocasiões. Existe hoje a obsessão pela privacidade (sem dúvidas isso é essencial), mas a unção sacerdotal não tem uma missão pública? A ambivalência pôs tudo em confusão, gera agonia interior, pois o coração sacerdotal está dividido entre os valores clássicos do ministério e o estilo privado de viver hoje. Então a agonia se prolonga com a chamada eficiência da administração que rege o dia a dia do presbítero. Ele tem horários para tudo, a vida vai na cadência da agenda. Funcionários ou profetas itinerantes? Onde foi parar a liberdade do Espírito que não se apega a letra? Mas a ambivalência é tirana, segue se infiltrando e dando gargalhadas da nossa agonia.